Nos próximos anos, serão realizados no Brasil os dois maiores eventos esportivos da atualidade, sendo o primeiro deles a Copa do Mundo de Futebol 2014. Dentre as inúmeras questões jurídicas que ganham relevância à medida que se aproxima essa importante competição, destaca-se a tutela dos direitos de propriedade intelectual de titularidade dos atores envolvidos em sua realização, em especial a entidade organizadora (a FIFA – Fédération Internationale de Football Association) e os seus patrocinadores.
Um evento desse porte pode implicar, para o país que o sedia, não apenas crescimento temporário de setores de serviços relacionados, por exemplo, a hotelaria, gastronomia e turismo, como também importante legado em infra-estrutura e destaque político no cenário internacional, se realizado um planejamento eficaz pelo Poder Público. Daí a importância que a Copa do Mundo de Futebol 2014 representa para o Brasil e a necessidade de assegurar a sua plena realização.
E sem os vultosos recursos captados pela FIFA, por meio de contratos de patrocínio, da vinculação entre as marcas de titularidade das partes, a Copa do Mundo de Futebol, se não inviabilizada, estaria longe da magnitude que hoje ostenta.
Em termos gerais, os contratos de patrocínio permitem aos patrocinadores realizar ações promocionais durante a competição, inclusive no interior dos estádios, bem como vincular as suas marcas, produtos e/ou serviços às marcas, mascotes, emblemas oficiais e demais elementos distintivos relativos ao evento, de titularidade da entidade organizadora, proporcionando destaque e exposição de alcance mundial em veículos de comunicação variados.
Não menos importante que a tutela dos direitos de propriedade intelectual da entidade organizadora e dos patrocinadores da Copa do Mundo de Futebol 2014 é cuidar para que o seu exercício não avance sobre o domínio da liberdade de iniciativa de terceiros, em prejuízo da livre concorrência, que constitui princípio expresso da ordem econômica brasileira.
Significa dizer que a tutela dos direitos de propriedade intelectual da entidade organizadora e dos patrocinadores da Copa do Mundo de Futebol 2014 não deve corresponder ao cerceamento do legítimo direito de outras empresas, muitas vezes concorrentes daqueles, desenvolverem e divulgarem licitamente as suas atividades durante o período de realização da competição.
É exatamente por ocasião de eventos esportivos dessa magnitude que se tornam mais freqüentes os conflitos entre, de um lado, os direitos de propriedade intelectual dos respectivos organizadores e patrocinadores e, de outro lado, a liberdade de iniciativa de terceiros, interessados em divulgar os seus produtos, serviços e/ou marcas. Esses conflitos freqüentemente se dão por meio da pratica conhecida como ambush marketing (que trataremos como sinônimo de marketing de associação, ainda que sua tradução literal pudesse levar à expressão marketing de emboscada).
A expressão ambush marketing tem origem em estudos de especialistas da área de marketing (ou publicidade e propaganda) e objetiva definir uma determinada conduta ilícita, pela qual, por exemplo, uma empresa que não possui autorização ou licença divulga seus produtos ou serviços de forma vinculada a um determinado evento (desportivo) e de modo a não possibilitar qualquer reação pelos verdadeiros organizadores ou patrocinadores desse evento.
Conseqüentemente, a expressão ambush marketing vem sendo utilizada como sinônimo de uma conduta ilegal, ilícita, sendo que um dos seus tipos (para quem adota essa classificação), o marketing de emboscada por associação, pode e deve ser considerado ilícito.
Portanto, a ilicitude da conduta não está exclusivamente na “emboscada”, mas sim na tentativa de associar indevidamente (pois sem autorização ou licença para tanto) um nome, produto ou serviço de uma empresa à realização de um grande evento desportivo de modo de que o público seja levado a crer que existe algum tipo de vínculo, contratual ou comercial, entre a empresa e a entidade organizadora do evento.
Enfatize-se, finalmente, que o que se tem buscado nas legislações de outros países é vedar a conduta denominada ambush marketing, sendo certo que não se tem notícia da criação de diferentes versões para o significado da expressão ambush marketing, mas sim da definição da conduta assim nominada. Em breves palavras, entendemos que a expressão correta a ser utilizada é marketing de associação, sendo que somente aquele que se revestir de ilicitude é que deve ser vedado pelo regramento legal.
Na iminência de ser submetido a votação na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei nº 2.330/2011, que visa instituir a Lei Geral da Copa, define como crime o que optou por chamar de marketing de emboscada, por meio de dois tipos penais.
O primeiro deles, o marketing de emboscada por associação, consiste em “Divulgar marcas, produtos ou serviços, com o fim de alcançar vantagem econômica ou publicitária, por meio de associação direta ou indireta com os Eventos ou Símbolos Oficiais, sem autorização da FIFA ou de pessoa por ela indicada, induzindo terceiros a acreditar que tais marcas, produtos ou serviços são aprovados, autorizados ou endossados pela FIFA” (artigo 18).
A pena prevista no Projeto de Lei nº 2.330/2011 para esse crime é a “detenção, de três meses a um ano, ou multa”. E, nos termos do parágrafo único do artigo 18, “Na mesma pena incorre quem, sem autorização da FIFA ou de pessoa por ela indicada, vincular o uso de ingressos, convites ou qualquer espécie de autorização de acesso aos Eventos a ações de publicidade ou atividades comerciais, com o intuito de obter vantagem econômica”.
O outro tipo penal previsto no Projeto de Lei nº 2.330/2011, sujeito à mesma pena, é o marketing de emboscada por intrusão, que consiste em “Expor marcas, negócios, estabelecimentos, produtos, serviços ou praticar atividade promocional não autorizados pela FIFA ou por pessoa por ela indicada, atraindo de qualquer forma a atenção pública nos Locais Oficiais dos Eventos, com o fim de obter vantagem econômica ou publicitária” (artigo 19).
Além da criminalização do marketing de emboscada, o Projeto de Lei nº 2.330/2011 prevê diversos outros instrumentos destinados à tutela dos direitos de propriedade intelectual da entidade organizadora e/ou dos patrocinadores da Copa do Mundo de Futebol 2014, tais como:
- a anotação, pelo INPI – Instituto Nacional da Propriedade Industrial, do alto renome das marcas que consistam em símbolos oficiais da FIFA, assegurando-lhes, por conseguinte, proteção especial, em todos os ramos de atividade, nos termos do artigo 125 da Lei da Propriedade Industrial (Lei nº 9.279, de 14.5.1996);
- a anotação, pelo INPI – Instituto Nacional da Propriedade Industrial, das marcas notoriamente conhecidas de titularidade da FIFA, assegurando-lhes, por conseguinte, proteção especial, independentemente de estar previamente depositadas ou registradas no Brasil, nos termos do artigo 126 da Lei da Propriedade Industrial;
- a autorização para a FIFA e pessoas por ela indicadas para, com exclusividade, divulgar suas marcas, distribuir, vender, dar publicidade ou realizar propaganda de produtos e serviços, bem como outras atividades promocionais ou de comércio de rua, nos Locais Oficiais de Competição, nas suas imediações e principais vias de acesso;
- criminalização de atos que consistam em reproduzir, imitar ou falsificar indevidamente quaisquer Símbolos Oficiais de titularidade da FIFA, bem como em importar, exportar, vender, oferecer, distribuir ou expor para venda, ocultar ou manter em estoque Símbolos Oficiais ou produtos resultantes da reprodução, falsificação ou modificação não autorizadas de Símbolos Oficiais, para fins comerciais ou de publicidade, salvo o uso destes pela FIFA ou por pessoa autorizada pela FIFA, ou pela imprensa para fins de ilustração de artigos jornalísticos sobre os Eventos; e
- previsão expressa de diversos atos que, se praticados sem autorização da FIFA ou de pessoa por ela indicada, consideram-se ilícitos, tais como atividades de cunho publicitário ou promocional nos Locais Oficiais de Competição.
O aspecto que maior controvérsia causará na resolução dos conflitos entre, de um lado, os direitos de propriedade intelectual da entidade organizadora e dos patrocinadores da Copa do Mundo de Futebol e, de outro lado, os direitos de terceiros que pretendam desenvolver e divulgar as suas atividades durante a competição, por meio de campanhas publicitárias e estratégias de marketing, provavelmente será o limite geográfico em que estes poderão realizar a divulgação de seus produtos, serviços e/ou marcas.
Isso porque o Projeto de Lei nº 2.330/2011 veda tal prática não apenas nos Locais Oficiais de Competição, como também “nas suas imediações e principais vias de acesso”, ou seja, em locais públicos. Essa restrição, de questionável constitucionalidade face ao instituto da livre iniciativa e seus desdobramentos, certamente será objeto de questionamentos em caso de aprovação do Projeto de Lei nº 2.330/2011 em sua redação original.
A livre iniciativa constitui fundamento expresso da ordem econômica brasileira, conforme previsto no artigo 170 da Constituição Federal, e compreende a liberdade de comércio e indústria, que se consubstancia na faculdade de criação e exploração de uma atividade econômica a título privado e não sujeição dos particulares a qualquer restrição estatal senão em virtude de lei, bem como a liberdade de concorrência, que se manifesta na faculdade de conquistar lealmente a clientela, na proibição de formas de atuação passíveis de deter a concorrência e na neutralidade do Estado diante do fenômeno concorrencial, em igualdade de condições dos concorrentes.
A liberdade de concorrência concebida pela Constituição Federal pressupõe a lealdade: assegura-se aos particulares o direito de atrair a clientela de seus concorrentes, desde que não se valham, para tanto, de práticas desleais. Como afirma José de Oliveira Ascensão, “A concorrência supõe a liberdade; mas a concorrência livre deve ser a concorrência leal. As duas vertentes são complementares: nem a concorrência livre subsiste sem lealdade na concorrência, nem a invocação de deslealdade pode ser pervertida a ponto de pôr em causa a concorrência livre”.
O dever de lealdade, ínsito ao regime da livre concorrência, resulta, nas palavras de Carlos Alberto Bittar, do princípio da honestidade:
“(...) Com efeito, domina o mundo negocial o princípio da honestidade, pressuposto necessário ao regime da livre concorrência, ao qual se associa o da lealdade (ou correção profissional), voltado especialmente para o respeito e a defesa da concorrência, como pilastras mestras na matéria, como, aliás, se entende universalmente, devendo, a par disso, ajustar-se ao regime jurídico de sua atividade. (...)”
Desde que permeada pela lealdade, pela honestidade comercial, respeitando os limites validamente impostos pela lei, pela boa-fé e pelos bons costumes, a concorrência é salutar e encontra amparo na Constituição Federal. É exatamente por isso que não se mostra apropriada qualquer generalização no sentido de que toda forma de associação dos produtos, serviços e/ou marcas de terceiros a eventos desportivos que não patrocinam reputa-se ilícita.
Na ânsia pela criação de uma lei que contemple os interesses da FIFA e dos patrocinadores da Copa do Mundo de Futebol, o legislador, por meio do Projeto de Lei nº 2.330/2011, parece ter – se não desconsiderado – relegado a segundo plano os direitos, em especial aqueles que decorrem da livre iniciativa, assegurados pela Constituição Federal a terceiros interessados em divulgar os seus produtos, serviços e/ou marcas no escopo da competição.
Esse é um fator que, a se confirmar com a aprovação do Projeto de Lei nº 2.330/2011 em sua redação original, certamente implicará maior complexidade nos litígios entre a FIFA, os patrocinadores da Copa do Mundo de Futebol e terceiros interessados em divulgar os seus produtos, serviços e/ou marcas no escopo da competição, tornando mais dificultosa a demonstração e a constatação ou o afastamento da verossimilhança do direito em discussão, imprescindível para a sua tutela com a urgência que o evento, por ser de curta duração, exigirá.
Melhor seria se o legislador optasse por criar um diploma que, inclusive por meio da enumeração de condutas vedadas e permitidas aos patrocinadores do evento e também aos demais anunciantes, conferisse maior efetividade à resolução de conflitos entre os atores envolvidos na realização da competição, reprimindo abusos em ambas as direções, sempre com a observância dos direitos resguardados pela Constituição Federal.
A resposta definitiva do legislador a essa importante demanda será dada por meio do texto final da Lei Geral da Copa, quando de sua aprovação.
André Zonaro Giacchetta
Advogado. Sócio de Pinheiro Neto Advogados. Mestre em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Ciro Torres Freitas
Advogado. Associado Sênior de Pinheiro Neto Advogados. Mestrando em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Fonte: http://www.britcham.com.br/email/resenha_legal_0512.htm
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