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terça-feira, 27 de dezembro de 2011

A Justiça especializada na Copa do Mundo

Por Eduardo Carlezzo



Não há atentado à soberania brasileira no estabelecimento de uma Justiça especializada durante a Copa do Mundo de 2014. O projeto da Lei Geral da Copa, em tramitação no Congresso Nacional, prevê em seu artigo 37 que poderão ser criados juizados, varas, turmas ou câmaras especializadas para julgamento das causas relacionadas ao torneio e seus eventos paralelos. Não se trata de benefício à Fifa, como se tem apregoado. Pelo contrário. É um benefício à própria estrutura judiciária brasileira e à sociedade em geral.
Por Justiça especializada, entenda-se a criação de juizados especiais nas cidades-sede dos jogos ou a reorganização interna do Judiciário e Ministério Público com vistas a estabelecer um esquema de atuação concentrado e especializado para o processamento de casos durante o período da Copa.
Segundo estimativas do governo federal, 600 mil turistas estrangeiros virão ao Brasil para assistir a competição. Trata-se de um contingente enorme de pessoas transitando pelo país no curto período de um mês e que potencialmente significa o dobro daquelas que compareceram ao evento na África do Sul.
No caso de infrações ou crimes envolvendo estrangeiros, é fundamental que o processo possa ser solucionado rapidamente. Uma eventual execução de sentença no país do infrator se tornaria extremamente complicada e morosa, seja pelas próprias características de um processo judicial, seja pela inexistência de tratados com determinados países.
Na África do Sul, foram criadas 56 cortes especiais que funcionaram entre 28 de maio e 25 de julho de 2010 (a Copa aconteceu entre 11 de junho e 11 de julho). O objetivo principal desses juizados era processar todos os crimes cometidos neste período e que tivessem relação com o evento, especialmente aqueles onde estivessem envolvidos turistas. Foram recrutados 110 magistrados e 260 promotores de justiça. No total, 222 crimes ligados à Copa foram cometidos, resultando em 138 condenações. Assim como já ocorre no Brasil, na África do Sul a instalação dessas cortes não aconteceu sem polêmica, tendo em vista a saturação do sistema judiciário local.
Em 2006, na Alemanha, não foram criadas cortes especiais. Contudo, o sistema judiciário foi adaptado a fim de preparar magistrados e promotores para atuarem durante o evento. Com foco em crimes de pequeno e médio potencial ofensivo, os processos foram instruídos de forma célere e especializada para enfrentar os desafios da Copa do Mundo.
Não temos o padrão social existente na Alemanha, onde as taxas de criminalidade são baixas. Para que se tenha uma ideia, uma das preocupações principais do sistema de segurança em 2006 eram os "hooligans" ingleses. No Brasil, o buraco é (e será) bem mais embaixo, de forma que a comparação deve ser feita com a África do Sul, país em que os delitos atingem altos índices.
O tratamento diferenciado de determinados assuntos pelo sistema judiciário não é algo novo no Brasil. No próprio futebol, de acordo com o previsto no Estatuto do Torcedor, já existem tribunais especiais dentro de estádios. Também já existem juizados em aeroportos para dirimir disputas entre consumidores e companhias aéreas. Da mesma forma, juizados específicos para a Copa não caracterizariam um benefício à Fifa, mas sim um mecanismo para conferir maior eficácia ao exercício da tutela jurisdicional.
Um dos objetivos do artigo 37 é também dar celeridade e especialização ao processamento e julgamento de questões de natureza comercial. Na última Copa, houve manifestações de insatisfação com o excessivo viés comercial/criminal dado a alguns assuntos, como o caso das holandesas presas por propaganda ilegal de bebidas durante uma partida. Se soubermos separar interesses comerciais da Fifa da necessidade de prestação da tutela jurisdicional de forma rápida e segura, a sociedade civil terá marcado um gol em 2014.
Sob o ponto de vista eminentemente processual, existem aspectos muito mais polêmicos do que a criação de uma Justiça especializada para a Copa. Por exemplo, o artigo 38 do projeto de lei confere a Fifa isenção no adiantamento de custas, emolumentos, caução e honorários periciais em várias instâncias da Justiça, assim como isenção na condenação em custas e despesas processuais, salvo comprovada má-fé.
Contudo, e não menos importante, não podemos esquecer que o governo deste país em 2007 assinou uma série de documentos com a entidade mundial do futebol, outorgando garantias e assumindo obrigações que deveriam, posteriormente, virar lei. Compromissos assumidos devem ser cumpridos. Se pleiteamos a entrada na lista dos países dito "sérios", o Brasil não pode simplesmente desconsiderar o que já foi assinado e discutir novamente cada ponto. Afinal, segurança jurídica, e judiciária, é o que todos queremos e precisamos.
Eduardo Carlezzo é advogado, sócio do Carlezzo Advogados e membro do Conselho Consultivo do Boletim Europeu de Política e Desporto, da Sports Law Association (EUA) e da British Association of Sport and Law

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